segunda-feira, 29 de agosto de 2005

SERTANEJO DO BÃO






de Valéria del Cueto
29 de agosto de 2005
“Mas... é iguarzin que lá na roça...”, diz a senhora de mãos calejadas, desamassando as dobras do seu melhor vestido. “Que lindo o moleque que era o Zé de Camargo, quer dizer, o Mirosmar criança, tinha brio nos oío...”. Completa a outra. “Taí o que o povo precisa de ver. Ele mesmo dando certo. Sonhando e sendo feliz...”, opinião do senhor que conduz a mulher “Fiquei com os óio cheio d’água na hora que o mínino morreu.”, diz ela, limpando uma última lágrima . “O bom é que a gente conhece a história e sabe que apesar das tristezas, tudo vai acabar bem...” consola-se. 
Opiniões como estas é o que falta para a carreira de “2 filhos de Francisco”, filme de Breno Silveira, que conta a história de Zezé de  Camargo e Luciano, produzido pela Conspiração e distribuído pela Columbia, decolar. A fala de gente comum que, de alguma maneira, não vai ver as cenas do filme como uma obra cinematográfica, mas, encontrar nelas um pedaço qualquer da sua própria vida. Dizem que o povo ainda não chegou até o filme. Se isso é verdade, um novo fenômeno pode acontecer: “2 Filhos de Francisco” vai crescer e não reduzir sua bilheteria nas próximas semanas.
 A SAUDADE MATA A GENTE...
Assisti o filme num sábado chuvoso, no meio da tarde, no Cinema Roxi, em Copacabana. E, apesar de parecer estranho, vou falar do filme numa posição que muito me orgulho de ostentar: de alguém que teve o privilégio de conhecer e, sim, viver a realidade apresentada na tela. 
Tudo era de verdade. O rádio de pilha que não pegava, o sol escandante o solo árido e o suor pegajoso. As estradas de terra, que entrava na boca de quem ia na parte de trás da caminhonete, comendo poeira.
Como a poeirada do baile no “salão” de terra batida onde Mirosmar aprende a tocar acordeon, em meio a nuvem de pó levantada pelos pés dos dançarinos . O desconforto dos ônibus, a sujeira das paradas, o barulho da rodoviária e a cara amassada e suarenta dos viajantes. 
Impecável o trabalho da diretora de arte, Kiti Duarte. É claro que meu “eu” que percorreu as estradas do centro oeste desde os idos de 1966, ainda criança, não diria isto. Explicaria assim:“É tal e qual, sem tirar nem por”... Tudo é cuidadoso: o figurino, a maquiagem o clima alcançado. A única restrição que faço, mas explico é a farda dos milicos, super amassadas. Não era assim. Daria cadeia e punição. Nem todo mundo é filha de milico para saber de um detalhezinho como este... 
PRA IR AONDE O POVO ESTÁ
Por isso que acho que falta deixar o povo falar do que viu e sentiu. Mostrar o filme para ele. Não em multiplex, que “este” povo não chega lá. Mostrar nos cinemas brasileiros, gastar as cópias em projetores menos sofisticados. Talvez “2 Filhos” tenha perdido para “A Sogra”, comédia com Jane Fonda, que também estava em sua primeira semana de exibição, no quesito número de espectadores por sala. Mas foi por que as salas não eram as freqüentadas pelo público alvo preferencial do filme. 
 Já sei, vai dizer que o filme não fez feio, apenas não estourou como devia. Não concordo. Ele ainda não chegou onde devia. E por onde passou, arrebanhou admiradores. Não fosse assim, por que foi aplaudido (!) no final da sessão? Isto no Roxí, em Copacabana, não num cinema de periferia, ou no interior do Brasil.
Era uma sessão repleta de povo do bairro: velhinhas, crianças e mais idosos que chegaram ao final da exibição de olhos vermelhos e cheios de esperança. Afinal, ali se via uma história do sucesso. De um sucesso que poderia ser de qualquer um de nós que, como Seu Francisco, tivesse um sonho e, isto quem diz sou eu, uma mulher como dona Helena.
TEMPERO ROÇEIRO
Outros trunfos ajudam a fazer de “2 Filhos de Francisco” o que ele será. 
Um, elenco. Já é voz corrente que Ângelo Antônio dá um banho no papel de Francisco, Dira Paes faz o contra ponto. Tanto a escolha, como a direção de atores é primorosa. Dizem que Paloma Duarte seria merecedora do “Prêmio Panda”, instituído em Gramado há muitos anos atrás por freqüentadores ilustres do evento para “premiar o cinema de INVENÇÃO: um instante, uma cena, um clima especial. Aquele instante em que o cinema se revela com toda a sua potência criativa”, enfim, algo que fizesse diferença, como o “arfar” de sua respiração no momento em que encontra Zezé de Camargo pela primeira vez.
Outro ponto alto, sem dúvida, é a música. Se para quem não tem referências sertanejas ela já é maravilhosa, imagina o que acontece com
quem, na terceira nota da gaita tocada por Mirosmar para o pai, já sabe que outras notas depois ele estará “executando” o clássico “Menino da Porteira”. Ou para quem é capaz de reconhecer a música de Pena Branca e Xavantinho.

Acho dispensáveis as participações de Caetano Veloso, dando sua pitada sertaneja, e Nei Mato Grosso, com “Calixbento”. Talvez se Nei tivesse visto a cena, pudesse interagir melhor sua interpretação com o momento em que a música é usada. Foi teatral demais. Deveria ter sido mais próxima da forma com que ele interpreta “São Francisco”, no disco (é... eu disse disco, coisa que se vê muito neste filme)  “Arca de Noé”, de Vinícius de Moraes.
CORAÇÃO BRASILEIRO
Poderia falar do ritmo, estilo, timming...Nada disso é relevante para o público que pode fazer deste filme um verdadeiro sucesso. A emoção está ali. Numa história verdadeira. E brasileira. Tão brasileira quanto a falta de luz elétrica no interior do país e o churrasco rodízio que passa sob os olhos famintos dos meninos cantores. 
Um último toque, a lição que fica para mim e, espero, 
também seja percebida pela dupla. O canto sertanejo é lindo, lírico e sensível. Foi ele que alavancou, inclusive, o orgulho de ser caipira. A coisa pega quando tudo isso ameaça virar country. Cabe aos “formadores de opinião” do pedaço e aqueles que podem dar voz a nossa cultura popular, a responsabilidade de alimentá-lo e fazê-lo evoluir. Usando a inspiração que Deus lhes deu, e o apoio de homens como Seu Francisco, para fazer da música sertaneja, uma das mais brasileiras de nossas manifestações culturais.
 Valeria del Cueto é jornalista e cineasta 
Foto de Vantoen Pereira Jr.


















8 comentários:

Neusa Barbosa disse...

Olha só, "mermã":
achei muito legal o seu comentário.
Ainda mais porque me coloca coisas que eu não tinha atentado - que o filme seja fiel aos ambientes onde se passa.
Paulistana de carteirinha, não conheço o pó dessas churrascarias e rodoviárias e estradas de Goiás...
bem observado, da sua parte, a dispensável participação do Caetano e a teatralidade do Calixbento do Nei. Sobram, num filme tão minimalista e discreto, que não precisa nada desses penduricalhos.
Angelo Antonio e Dira estão autênticos demais. Aliás, é o papel da vida do Angelo, a gente nem sabia que ele podia atuar tão bem, né?
A Dira, sabemos, é ótima 24 horas por dia e consegue se despojar da beleza dela tão inteiramente que acreditamos totalmente nessa Helena sertaneja, mãe de tantos filhos e baluarte inconteste dessa família de Mirosmar, Emival, Welton e todos mais.
Que o filme chegue nos cinemas-poeira do interior do Brasilzão é o que a gente quer...espero que um dia isso aconteça. E que seja breve.
bj
Neusa

Valeria del Cueto disse...

Olhar do interior?

Te respondo com o email que recebi de Kleber Lima, um coleguinha de Mato Grosso:

"Oi Valéria,

Acabo de ler sua crítica a "2 filhos de Francisco". Estou emocionado, quase tanto quando vi o filme, na estréia. Também sou caipira, pira pora, se bem que do lado mais sertão mesmo. Como goiano, tive a mesmíssima impressão das senhoras que vc testemunhou com lágrimas nos óio. E acho o filme um primor em vários sentidos: enredo, fotografia, atuação dos atores, música, enfim. Vi retratos da minha própria infância no filme. Sou de uma cidade do interior de Goiás, chamada Iporá. Tive a oportunidade de ver, lá, o Zezé Di Camargo cantar músicas muito belas, quando formava dupla com um tal Zazá (a dupla se chamava, na época, Zazá e Zezé). Acho, como vc, que o filme deveria ser projetado em escolas públicas, salões comunitários das igrejas, associações de bairros, de graça, para o Brasil se reconhecer um pouco na tela mágica. Parabéns pelo texto e pela percepção. A propósito, descobri duas coisas em vc hoje que me fazem admirá-la ainda mais: é interiorana e filha de milico."

Claudio "CAlex" Fagundes disse...

Adorei sua crítica, Valéria. Vou ver o filme.

Nossa! Quanta coisa legal aqui na tua página. Como você tem sido uma visitante habitual da minha página, tenho que retribuir as visitas!

Valeria del Cueto disse...

Não perca o filme!
Escrevi o material no sábado, depois de assisti-lo.
Na primeira semana, as analises diziam que ele tinha "cumprido tabela", mas ficado abaixo das expectativas. Na segunda semana, houve um crescimento no número de espectadores por sala
Tem um dado interessante: é muito legal o público durante a semana.
Minha teoria a respeito estará na matéria que pretendo fazer depois de sair o resultado da terceira semana.
Quanto a sua página, CALEX, já te disse: lamento não poder ler e ouvir TUDO mas o que consigo, aproveito. Também fico contente por que sei onde encontrar o que procuro e a quem perguntar (rsrsr)...
Já que você veio, um pedido: posso linkar o Edu da Gaita para cá ?

Claudio "CAlex" Fagundes disse...

Claro que pode! Eu tenho mais coisas do Edu. Só não dá para colocar tudo.

To doido aqui... deveria estar escrevendo a minha tese. Semana que vem indo para Vitória para um Congresso. Uma correria danada!

Barbara Fontes disse...

Gostei muito doe escreveu sobreo filme. Assisti na quarta-feira passada (31/08), no Multiplex do Shopping Pantanal, em Cuiaba/MT. Enquanto assistia pensei igual a voce: Esse filme tem que ir ate o povo. Nao pode ficar restrito aos cinemas dos shoppings (como e o caso de Cuiaba). Esse filme é cara do povo brasileiro! Tem que passar na praça das cidades e vilarejos do interior.

Eu fiquei muito emocionada com o filme. Me identifiquei com ele em alguns momentos...nao musicalmente é claro, porque nem cantar no banheiro eu sei!
Mas no desejo que realizar um sonho! Dirigio documentarios e o meu primeiro que realizei profisisonalmente: Arne Sucksdorff: Uma Vida Documentnado a Vida, eu ouvi de tudo que era apoio negativo, ate de maluca me chamaram, sofri diversos boicotes. Em janeiro de 2000, fui pra Suecia encontrar com Arne num Asilo, tinha apenas com 21 dolares! Morei de favor e comia apenas quando os moradores da casa como me convidavam, não comprei nem Coca-Cola. Mas, sinceramente, tive muita sorte, tudo poderia ter sido pior!
Iniciei a pesquisa em 1994, 2001 consegui realiza-lo e só em 2004 consegui lançá-lo!
E uma luta! Mas não me arrependo.

Este filme fala de sonhos, de sobrevivência e laços familiares e também mostra um Brasil desumano!

Bárbara

Valeria del Cueto disse...

Querida!
Voce está no multiply...
O lugar mais legal que encontrei para "contar histórias" e me expressar.
Seja aqui, seja no grupo http://pantanal.multiply.com, onde estão as coisas diretamente ligadas ao curta metragem "História Sem Fim...do Rio Paraguai - O Relatório" e ao projeto completo (longa, exposição, DVD, etc, etc).
Faça o mesmo. Conte suas experiências. Registre sua aventura.
Beijo e sucesso
V

Valeria del Cueto disse...

Confirmando...
E comemorando!

De O Globo

‘2 filhos de Francisco’ está no Top 10

Jaime Biaggio

Somados os resultados do seu quarto fim de semana em cartaz, “2 filhos de Francisco — A história de Zezé di Camargo & Luciano” contabiliza 2,214 milhões de espectadores, total que já o coloca no Top 10 das bilheterias de 2005. Por ora, na décima posição. Mas seu ritmo de crescimento deve lhe garantir o quinto lugar até a semana que vem e o terceiro ao fim de sua carreira, aposta o diretor geral da Columbia, distribuidora do filme, Rodrigo Saturnino Braga.

— O filme caiu 3% no último fim de semana, ou seja, nada — disse ele. — Em alguns lugares, chegou a ter aumento de público, como Brasília, Curitiba e Belo Horizonte.

Embora seu primeiro fim de semana não tenha sido excepcional, o filme só fez crescer de lá para cá. Desde que completou dez dias em cartaz, seu desempenho supera o de quase todos os grandes sucessos recentes do cinema nacional no mesmo período. A marca atual de 2,214 milhões em quatro fins de semana é inferior apenas à de “Carandiru”, que fez 2,270 milhões no mesmo número de dias.

— Nossa previsão de bilheteria final já foi para a casa dos 3 milhões, talvez até 3 milhões e meio — adianta Rodrigo. — E ele ainda está por estrear em muitas cidades de interior.

Este ano, à exceção de “Os Incríveis” (lançamento de dezembro de 2004, mas que fez a maior parte de sua carreira comercial já em 2005) e de “Madagascar”, que já têm mais de 4 milhões de espectadores cada, nenhum filme chegou à casa dos 3 milhões.