Qualquer hora é hora, mas naquela...
Nas horas ruins devemos pensar em coisas boas. Se o bicho estiver pegando, devemos apurar a energia, pensando em coisas boas que aconteceram nas horas ruins.
E é seguindo a segunda parte desta máxima Valeriana (me chamam assim entre os Tribuneiros de Uruguaiana, Rio Grande do Sul) que volto no tempo ao jogo do Brasil com os Estados Unidos na Copa do Mundo de Futebol, 1994, nos USA. Foi depois da partida que tive a oportunidade de encontrar uma pessoa que nunca esqueci, apesar de só saber vagamente quem ela é.
Assim que cheguei em casa, vi que não tinha cigarros. Desci, peguei o carro e fui ao bar mais próximo para comprar um maço. Na volta, preferi evitar ruas mais movimentadas por que tinha muitas festas e as comemorações sempre provocavam engarrafamentos patrióticos, afetivos, efusivos e muito barulhentos. Pensando nisso, voltei por minha própria rua, paralela a avenida principal.
O trajeto era tão curto, umas três quadras, que esqueci de colocar o cinto de segurança. O problema é que no meio do caminho não havia uma pedra, havia uma pequena ladeira e foi bem no topo dela que, um outro carro, avançou para minha pista, vindo em sentido cego e contrário, e nos pechamos de frente. (pechar quer dizer bater de peito em espanhol. É usado no sul do Brasil para indicar uma batida de carro).
Não vi nada. Quando voltei ao mundo foi com a sensação de estar me afogando, com a cabeça jogada para trás. Tentei levantá-la mas cada vez que ia pra frente, procurando respirar, me empurravam de novo e eu afogava outra vez... Até que consegui falar e explicar que precisava desobstruir minhas vias respiratórias.
Estava num carro que seguia velozmente pelas ruas da cidade em direção a Santa Casa, me explicou o motorista, perguntando se eu me lembrava o que tinha acontecido. Olhei o carro, um carro branco todo ensangüentado, pelo menos do meu lado, e perguntei ao motorista por que ele estava naquela roubada. Afinal, como eu havia ido parar ali?
Ele me explicou que estava passando, viu a batida e que todo mundo havia corrido para acudir os passageiros do outro carro, uma família e que nela uma senhora hipertensa que havia passado mal na hora da batida. Foi quando ele reconheceu o meu carro (aqui em Cuiabá, esse hábito é assombroso, pois se mantém mesmo com o enorme crescimento da cidade). Disse que me conhecia da Assembléia Legislativa, onde ambos trabalhamos, anos antes, e que não havia pensando duas vezes antes de entrar na “operação resgate”.
Olhei novamente o interior do carro dele, tentando ver o estado geral do ambiente e sentindo os pedaços do meu corpo, pra ver o tamanho do dano. Era sangue para todo lado que, cá entre nós, eu não conseguia distinguir muito bem. Acontece que na hora da batida, fui jogada em direção ao volante e foi lá que quebrei os óculos de graus, o nariz e deixei altamente prejudicadas as adjacências oculares. Pra encurtar, dias depois eu parecia um dos irmãos metralhas, com direito a máscara/disfarce.
Quando chegamos ao hospital foi uma confusão. Os médicos demorando, eu querendo um espelho para verificar o tamanho do estrago, amigos chegando, avisados a meu pedido pelo chefe voluntário do meu resgate.
Diante do caos, uma simples pergunta decidiu o rumo que eu ia tomar: “Tem fio de cirurgia plástica? Por que o trem tá feio” decretei depois de, finalmente, achar uma bancada de alumínio, na verdade o fundo de uma cuba. O que me alertou para o tamanho do desastre foi ausência total e combinada de qualquer espelho, inclusive na bolsa das amigas peruas que apareceram para a operação salvamento.
Diante da negativa, levantei acampamento em busca de um local mais adequado ao atendimento que meu rosto necessitava. Eram precisos uns dois ou três pontos, mas que fossem dados por quem entendia do riscado, quer dizer, de narizes.
Foi aí que perdi meu anjo da guarda. Já entregue para a força tarefa, ele achou que sua missão havia terminado e foi embora. Desde então nunca mais o vi. É claro que não agradeci o suficiente seu ato generoso.
Andei muitas vezes pelo prédio da Assembléia, tentando reconhecer sua voz (sou míope, o óculos quebrou, portanto, essa história é muito nítida na minha memória, mas somente um vago borrão nas minhas retinas). Procurar indícios sonoros que me permitissem reconhecê-lo virou, durante um tempo, uma mania. E, como toda mania da geminiana que sou, um dia, desapareceu.
O motorista desconhecido virou um ícone para mim. Quando sinto que as coisas não vão bem, é a ele que recorro. Nele que penso. Por que sei que qualquer um pode ser anjo e significar tanto quanto ele representa para mim, desde o dia em que o conheci, sem respirar no seu banco de passageiros.
Valeu amigo, por essa e por todas as outras vezes que te invoquei nos momentos de dificuldades. Muito obrigado de todo o coração.
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*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Este artigo faz parte da série Parador Cuyabano, do SEM FIM http://delcueto.multiply.com
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