Longe perto
Texto e foto de Valéria del Cueto
Como pode ser difícil o que parece fácil.
O único pedido era por uma parada estratégica na praia de
segunda. Feira, o dia da semana. O local, como sempre, é de primeira.
A intenção de lagartear na abertura do inverno carioca se
justifica pelo dia clássico de céu de brigadeiro e um calor incomum de fim de
junho. Fui.
“Só pode morar na favela”, observa o vendedor ambulante,
desviando minha atenção do caderninho e da escrevinhação, motivo mais que justo
para a parada solitária nas areias de Ipanema.
“...pra estar correndo atrás de pombo, só pode ser da
favela”, especifica o precursor das areias enquanto a revoada passa e os
pássaros riscam o azul anil do firmamento. Nota 5, e olhe lá, no quesito
dedução.
Acontece que quem provoca rebuliço é “Joêi”, uma bola de
pelo branquinho que veio marcar território assim que estendi a canga, já no
meio da tarde, debaixo do paredão da mureta, pros lados da entrada do Arpoador.
“Vem cá Joêi”, chama a dona do cachorrinho quando ele se
aproximou enquanto, disposta a cumprir minha missão, abria a bolsa e tirava
meus instrumentos, o papel e a caneta, sem dar trela. Por isso sabia o nome do
chow chow espevitado.
Olhei em direção ao vendedor que, junto comigo, apreciava
a farra do animalzinho atrevido se criando na direção da pombarada fazendo
alvoroço.
Ao sentir que o observavam, o casal e eu, emendou: “Ih,
esse não é da favela, está limpo demais, branquinho desse jeito”, recebendo um
sorriso complacente da dona de Joêi.
“É, mas pensando bem, que cachorro resistiria a essa
chance?”, desenrola filosofando o ambulante apresentando seu produto ao casal com
a “criança” no colo, formando o quadro da foto (que não vou tirar, vai ficar no
texto descritivo). Registro pronto pra posteridade. A moça havia colocado
óculos escuros no cachorro!
Sem abertura ao diálogo que permitiria uma oferta de seu
produto o vendedor se satisfaz com o sorriso orgulhoso dos pais do bichinho e
segue fazendo seu aboio pela areia quase vazia.
Fico eu, tentando lembrar qual era mesmo o fio que ia
desenrolar pra esse texto e ainda pensando no que no que ouvi: “só pode ser da favela”
e como o preconceito se apresenta de forma tão natural, inconsciente até, por
quem sofre com ele.
Acho que sou que nem o animal que não (re)conhece seu
lugar. Não posso ver um movimento que quero fazer marola. De vez em quando sou
bem recebida. Outras vezes, como fiz com Joêi, sou ignorada. Também tem horas
que consigo enfeitar o céu, desenhar no o azul bordando feliz a paisagem da
vizinhança literária.
Sinto que estou desenrolando bem por aqui!
Especialmente para quem quase não conseguiu chegar ao paraíso.
Foi um longo percurso que passou pelo purgatório de tentar dialogar com a ouvidoria
da Claro.
A cia telefônica dedicou a vários amigos que, sabendo que
não uso whatsapp, tentaram contato no dia do meu aniversário a singela mensagem
que dizia: “Esse celular está programado para não receber chamadas”.
Foram horas pra explicar que que não havia ligado no dia
porque não havia a menor possibilidade de me dedicar a esse processo kafkaniano
e masoquista justamente quando tudo que queria era comemorar a vida!
Foi depois de desenrolar essa demanda, na primeira
segunda-feira de desaniversário e de inverno, que me joguei aqui no longe perto
de Ipanema pra dar um alô ao Joêi, meu novo amigo despreconceituoso,
perseguidor de pombos indefesos e me reconectar a você, leitor.
Bom inverno!
*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Essa crônica faz parte da série “Arpoador”, do SEM FIM... delcueto.wordpress.com
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