Caitituando a paisagem
E no mas. Num tremendo esforço para manter a atitude mais zen possível diante da vida, suas surpresas (boas ou más) e percalços rotineiros. Pensa que é fácil?
Não é não. Há que se livrar dos problemas, chutar as decepções e enterrar na mais profunda e obscurecida parte da memória todos os motivos (reais ou imaginados) de stress. Ciente de que nada disso deixa de existir. Estão todos solenemente varridos para baixo do tapete. Pelo menos por enquanto...
Não sei no seu caso. Mas no meu em particular preciso de um incentivo para alcançar esta etapa elevada do nirvana mental.
Pode ser uma imagem, um som, ou ambos conjugados.
Razão pela qual dou um grande valor ao meu entorno visual, sensorial e suas nuances sutis. Procuro pontes que me levem além da realidade pura e simples.
Aliás, nem tão simples, raramente tão pura, por que o entorno tem sido uma pedreira. Trabalho bruto, incansável e sem glamour. Ralação mesmo.
Motivo mais do que suficiente para que valorizemos cada vez mais as oportunidades caitutuantes.
Olho pela janela. Os reflexos nos vidros das janelas dos prédios em frente indicam que não há sol, o céu coberto de nuvens velozmente empurradas pelo vento. Ele entra pelas janelas da sala fazendo as cortinas dançarem uma coreografia moderna sem ritmo, ao som do badalar dos sininhos pendurados no caminho da passagem da brisa forte, meio revoltada, que transita até a área de serviço.
Cortina e sons não falam a mesma língua. Para complicar há uma diferença de sink entre a dança e o som. O som é produzido décimos de segundos depois.
Do lado de fora, a rua passa escondida pelas folhagens em frente ao salão de cabeleireiro, as mercearias, portarias, a ex-lavanderia que fechou recentemente, o restaurante em manutenção, a loja de comidinhas naturais e eles, os botequins.
Num dia normal, por que se for dia de jogo do Areia, um dos quatro times de futebol de areia do Leme, aí o movimento definitivamente cresce.
É maior até que a confusão que acontece quando chegam ônibus de excursão no hotel dois prédios ao lado, mesmo com as buzinas furiosas do engarrafamento que os grandalhões sempre provocam. Mais do que o caminhão de lixo que passa nas madrugadas, fazendo um fundo sonoro de pesadelo de filme de terror.
É festa mesmo! Até na derrota. A última contra o outro time aqui do canto, o Embalo. Estava na frente, empataram, a decisão foi para os pênaltis e o título foi para o rubro-negro do morro.
Vale música alta e muita gritaria, que é para consumir a cerveja comprada para comemorar a vitória. Isso na noite de sábado. É um convite explícito para que os vizinhos saiam para dar uma volta e fugir da confusão. Ou se unirem a ela.
A campainha toca. Se tivesse alguém de fora, pensaria que era a da casa, mas não, é a da portaria. Saio do devaneio esportivo e vejo os primeiros pingos que fazem os transeuntes apertarem o passo. O rapaz anuncia para o interfone que traz as compras do 502.
Perco a concentração da caitituagem. Não faz mal, tenho mais o que fazer. Uma crônica pra escrever, uma foto para publicar e um vídeo para editar. É muita coisa para uma manhã de quarta-feira!
...
*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Outros textos da jornalista no http://delcueto.multiply.com
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