Tormenta literária
Texto de Valéria del Cueto
Acabar um livro, para mim, é um ritual. Demoro um tempo para me desvencilhar dos personagens e lugares onde a história acontece. Um exemplo disso é a última viagem que acabo de fazer.
Venho da Grécia, mais especificamente do Desfiladeiro de Termópiles, onde Leônidas e os 300 de Esparta sustentaram por uma semana a defesa suicida contra os persas. Ao entregarem suas vidas ali, mudaram o rumo da guerra e atrapalharam os planos de Xerxes, filho de Dario.
Li, do autor Steven Pressfield, duas obras de enfiada: “Tempos de Guerra”, sobre Alcebíades e a guerra no Peloponeso e, agora, “Portões de Fogo”. Tudo entremeado com “Vida de Escritor”, do jornalista Gay Talese.
Isto significa que além da Grécia, também andei por New York, Selma, Alabama, na década de 60, nos EUA, Itália no pós guerra e, até, na China, tratando de assuntos como restaurantes, boxe, reminiscências familiares, questões raciais americanas e futebol feminino.
Tudo em algumas poucas semanas, como uma forma de me desvincular da mecânica utilizada na última missão profissional e conseguir chegar no Leme.
Senti que essa aterrissagem seria mais complicada do que imaginava, considerando a paralisia que me dominou diante de todas as tarefas que tenho que desempenhar para colocar minha casa em ordem. Por isso, mergulhei fundo nas viagens literárias que estavam pendentes na estante cheia de maresia no meu quarto.
Essas foram apenas o começo, diante da tarefa que pretendo reassumir de pesquisar a linhagem Marçal, de sambistas cariocas. Para isso, vou imergir no Rio de Janeiro, começando por conhecer a cidade que adotou o samba como sua expressão maior, no final do século IX, e início do XX. O Rio, o samba e o carnaval de volta à minha vida...
Mas primeiro, preciso sair da Grécia de Leônidas, parar de sentir o cheiro dos rios de sangue e dos milhares de corpos que formaram o muro humano de guerreiros espartanos e persas mortos no desfiladeiro.
Somente uma vez essa sensação me incomodou tanto a ponto de não conseguir prosseguir a leitura. Quase repeti a dose, mas orgulhosamente resisti.
Coisa que não consegui fazer quando tentei ler “O salário dos Poetas”, de Ricardo Guilherme Dick. O cheiro do cavalo morto perto da cerca, não me deixou continuar. Por que agora continuo, mesmo com a sensação de náusea provocada pela descrição do campo de batalha e ampliada por minha imaginação?
Só tenho uma explicação. No segundo caso, atingi a sintonia entre a narrativa do fato, explícito nas primeiras páginas do livro de Dick, antes de me afeiçoar as personagens. O peso dos sentidos foi maior que minha cumplicidade com os acontecimentos e seus atores.
Já no caso de Portões de Fogo, quando a onda nauseabunda me atingiu, já era um dos 300, ou melhor, um dos escudeiros dos espartanos, companheiros de Xeo, narrador da epopéia. Jamais poderia abandoná-los sem saber como a história aconteceu. Mesmo sabendo, de antemão, seu trágico e histórico final.
Agora, quando preciso do sol do Leme para acabar com meu “let leg” literário e me reintegrar ao dia-a-dia, chove a cântaros. Em vez do sol, para clarear meus medos e me realocar no tempo e no espaço, veio a água que, espero, será suficiente para limpar as feridas e exaurir a água contaminada do riacho atormentado da minha imaginação.
* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Este artigo faz parte da série Ponta do Leme, do SEM FIM http://delcueto.multiply.com
Texto de Valéria del Cueto
Acabar um livro, para mim, é um ritual. Demoro um tempo para me desvencilhar dos personagens e lugares onde a história acontece. Um exemplo disso é a última viagem que acabo de fazer.
Venho da Grécia, mais especificamente do Desfiladeiro de Termópiles, onde Leônidas e os 300 de Esparta sustentaram por uma semana a defesa suicida contra os persas. Ao entregarem suas vidas ali, mudaram o rumo da guerra e atrapalharam os planos de Xerxes, filho de Dario.
Li, do autor Steven Pressfield, duas obras de enfiada: “Tempos de Guerra”, sobre Alcebíades e a guerra no Peloponeso e, agora, “Portões de Fogo”. Tudo entremeado com “Vida de Escritor”, do jornalista Gay Talese.
Isto significa que além da Grécia, também andei por New York, Selma, Alabama, na década de 60, nos EUA, Itália no pós guerra e, até, na China, tratando de assuntos como restaurantes, boxe, reminiscências familiares, questões raciais americanas e futebol feminino.
Tudo em algumas poucas semanas, como uma forma de me desvincular da mecânica utilizada na última missão profissional e conseguir chegar no Leme.
Senti que essa aterrissagem seria mais complicada do que imaginava, considerando a paralisia que me dominou diante de todas as tarefas que tenho que desempenhar para colocar minha casa em ordem. Por isso, mergulhei fundo nas viagens literárias que estavam pendentes na estante cheia de maresia no meu quarto.
Essas foram apenas o começo, diante da tarefa que pretendo reassumir de pesquisar a linhagem Marçal, de sambistas cariocas. Para isso, vou imergir no Rio de Janeiro, começando por conhecer a cidade que adotou o samba como sua expressão maior, no final do século IX, e início do XX. O Rio, o samba e o carnaval de volta à minha vida...
Mas primeiro, preciso sair da Grécia de Leônidas, parar de sentir o cheiro dos rios de sangue e dos milhares de corpos que formaram o muro humano de guerreiros espartanos e persas mortos no desfiladeiro.
Somente uma vez essa sensação me incomodou tanto a ponto de não conseguir prosseguir a leitura. Quase repeti a dose, mas orgulhosamente resisti.
Coisa que não consegui fazer quando tentei ler “O salário dos Poetas”, de Ricardo Guilherme Dick. O cheiro do cavalo morto perto da cerca, não me deixou continuar. Por que agora continuo, mesmo com a sensação de náusea provocada pela descrição do campo de batalha e ampliada por minha imaginação?
Só tenho uma explicação. No segundo caso, atingi a sintonia entre a narrativa do fato, explícito nas primeiras páginas do livro de Dick, antes de me afeiçoar as personagens. O peso dos sentidos foi maior que minha cumplicidade com os acontecimentos e seus atores.
Já no caso de Portões de Fogo, quando a onda nauseabunda me atingiu, já era um dos 300, ou melhor, um dos escudeiros dos espartanos, companheiros de Xeo, narrador da epopéia. Jamais poderia abandoná-los sem saber como a história aconteceu. Mesmo sabendo, de antemão, seu trágico e histórico final.
Agora, quando preciso do sol do Leme para acabar com meu “let leg” literário e me reintegrar ao dia-a-dia, chove a cântaros. Em vez do sol, para clarear meus medos e me realocar no tempo e no espaço, veio a água que, espero, será suficiente para limpar as feridas e exaurir a água contaminada do riacho atormentado da minha imaginação.
* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Este artigo faz parte da série Ponta do Leme, do SEM FIM http://delcueto.multiply.com
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