Quem tece teias, encera a vida
Texto e foto de Valéria del Cueto
Quando você ler esta narrativa, o que agora escrevo e descrevo, estarei a milhares de quilômetros da minha realidade atual: uma canga (sempre ela) estendida no gramado dos fundos do chalé onde descanso do trabalho, nos finais de semana.
O vento balançando a gigantesca mangueira em plena floração, enche o espaço de micro florezinhas. Este perímetro, aí incluindo meus cabelos já salpicado de florinhas, é todo delas que também se abrigam na costura do caderno onde escrevo agora (e quase sempre) e até na a teia de aranha, construída na grade verde que protege a porta da cozinha.
Há alguns finais de semana que acompanho a construção dessa teia, torcendo para que dona Elza não passe por aqui com sua vassoura, o que agora, com a quantidade de florezinhas presas nas garras da aranha-mor, não vai demorar para acontecer. Na verdade, a teia só sobreviveu a faxina semanal por que vim mais cedo pra Chapada dos Guimarães essa semana e atrapalhei a concentração de Dona Elza jogando conversa fora, pra variar. Assunto entre nós é o que não falta.
Desembarcamos na casa da beira da piscina mais ou menos ao mesmo tempo. E, desde então, ela tem sido uma guerreira no combate as formigas que, se achando as donas do pedaço, se abrigavam em lugares tão incríveis quantos o piso de madeira da sala, o canto do sofá, o estrado da cama de casal e, pasmem, dentro da esquadria de metal da porta principal.
Uma loucura. A casa estava fechada e, pelo sim, pelo não, por que não ocupa-la, como a tudo em volta? As formigas da Chapada são cascudas. Poderosas. E é aí, no quesito “caçadora de formigas”, que dona Elza faz o maior sucesso. Sua especialidade é acabar com a mordomia das meninas, garantindo um espaço pra mim no mundo maravilhoso da casa da rua da Piscina, sem número.
Sei que ganhei uma amiga e cúmplice no longo trabalho de cuidar não só da casa, mas de todo o terreno que me cabe no meu reino de final de semana. E não vai ser pouco o trabalho já que eu adoro brincar de casinha e dona Elza já me confessou que se apaixona pelas casas que cuida, mais que pelos moradores. E não é que após dois meses a diferença já é gritante?
O todo esse esmero me remete para minha infância. Acontece que parte do piso da sala e do espaço onde vejo vídeo e escuto música é de madeira. Quando assumimos os trabalhos no local, essa parte estava bem castigada. Os olhos de Dona Elza brilharam quando viu o tal piso e ela logo me disse que ia deixá-lo impecável. Não demorou muito. Quando abro a porta, na sexta feira, no final da tarde, sempre reparo no capricho do lustre, fruto de muita cera e esfregação. Igualzinho a casa onde fui criada, no Leme. Só que em proporções reduzidas, é claro.
E aí, volto no tempo. Lembro de Dona Ena, minha avó, dando altas broncas, por que a criançada corria pelas salas e corredores, detonando com os sapatos o latifúndio, arranhando os tacos recém encerrados. Era uma enxugação de gelo danada, querendo que nós, as três pestinhas de plantão, resistíssemos a correr – e muito – pela vida da família que habitava o apartamento do Leme.
O bom é que minha avó dava as broncas e procurava sempre um meio de “solucionar” o problema. No caso, ela acabou criando uma nova modalidade de brincadeira para dias de sol e chuva. Tirou de um armário um antigo vestido de não me lembro quem, que tinha camadas um tule cor-de-rosa na saia e fez uns sapatos, ou botas, de acordo com a preferência de cada neto, pra gente.... patinar pelo apartamento. Resultado: a brincadeira pegou, e o piso ficava um brinco. Brilhando como nunca pelo nosso efeito enceradeira.
Pois agora, anos luzes depois, quando entro na casa da Chapada e vejo o brilho do piso, sou atirada no túnel do tempo. Aliás, o zelo com o tal piso faz com que cada vez que chego dos passeios de bicicleta pelas redondezas e penso em atravessar este espaço, tão bem cuidado, para recolher meu imóvel andante, eu acabe chegando ao cúmulo de carregar a bicicleta para que suas rodas, cheias de lama ou de terra, não deixem seu rastro no piso de tábua corrida. Vai que Dona Elza seja tão boa de bronca como minha avó!
Pois é por causa de tantas e tão boas lembranças que informei lá em cima que quando estiver lendo esse texto, estarei tão longe. Vou ao encontro das minhas melhores recordações e motivações, rever o que me faz ser mulher o bastante para partir pra qualquer desafio. Meu ponto de referência, meu porto seguro.
E, na Ponta do Leme, ouvindo o barulho do mar batendo no Caminho dos Pescadores estarei lendo, como você, a história que, ao narrar, perpetuo. Afinal, cada um, assim como a aranha que habita a grade da porta, tece a teia que pode e merece. A questão é saber o que vamos recolher nela: alimento e nutrição, ou simplesmente florezinhas intrometidas de uma mangueira abusada, sacudia pela ventania, numa tarde amena do centro oeste. Bom dia pra você!
* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Este artigo faz parte de uma série do SEM FIM http://delcueto.multiply.com .
Um comentário:
Comico Valeria
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